quarta-feira, 10 de março de 2010

BRASÍLIA REVISITADA 85/87 (Lucio Costa)

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CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS DO PLANO-PILOTO

1 - A interação de quatro escalas urbanas

A concepção urbana de Brasília se traduz em quatro escalas distintas: a monumental, a residencial, a gregária e a bucólica.

A presença da escala monumental — "não no sentido da ostentação, mas no sentido da expressão palpável, por assim dizer, consciente daquilo que vale e significa" — conferiu à cidade nascente, desde seus primórdios, a marca inelutável de efetiva capital do país.

A escala residencial, com a proposta inovadora da Superquadra, a serenidade urbana assegurada pelo gabarito uniforme de seis pavimentos, o chão livre e accessível a todos através do uso generalizado dos pilotis e o franco predomínio do verde, trouxe consigo o embrião de uma nova maneira de viver, própria de Brasília e inteiramente diversa da das demais cidades brasileiras.

A escala gregária, prevista para o centro da cidade — até hoje ainda em grande parte desocupado — teve a intenção de criar um espaço urbano mais densamente utilizado e propício ao encontro.

As extensas áreas livres, a serem densamente arborizadas ou guardando a cobertura vegetal nativa, diretamente contígua a áreas edificadas, marcam a presença da escala bucólica.

A escala monumental comanda o eixo retilíneo — Eixo Monumental — e foi introduzida através da aplicação da "técnica milenar dos terraplenos "(Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios), da disposição disciplinada porém rica das massas edificadas, das referências verticais do Congresso Nacional e da Torre de Televisão e do canteiro central gramado e livre da ocupação que atravessa a cidade do nascente ao poente.

As Superquadras residenciais, intercaladas pelas Entrequadras (comércio local, recreio, equipamentos de uso comum) se sucedem, regular e linearmente dispostas ao longo dos 6 km de cada ramo do eixo arqueado - Eixo Rodoviário-Residencial. A escala definida por esta seqüência entrosa-se com a escala monumental não apenas pelo gabarito das edificações como pela definição geométrica do território de cada quadra através da arborização densa da faixa verde que a delimita e lhe confere cunho de "pátio interno"urbano.

A escala gregária surge, logicamente, em torno da interseção dos dois eixos, a Plataforma Rodoviária, elemento de vital importância na concepção da cidade e que se tornou, além do mais, o ponto de ligação de Brasília com as cidades satélites. No centro urbano, a densidade de ocupação se previu maior e os gabaritos mais altos, à exceção dos dois Setores de Diversões.

E a intervenção da escala bucólica no ritmo e na harmonia dos espaços urbanos se faz sentir na passagem, sem transição, do ocupado para o não-ocupado — em lugar de muralhas, a cidade se propôs delimitada por áreas livres arborizadas.

2 - A estrutura viária

O plano de Brasília teve a expressa intenção de trazer até o centro urbano a fluência de tráfego própria, até então, das rodovias; quem conheceu o que era a situação do trânsito no Rio de Janeiro, por exemplo, na época, entenderá talvez melhor a vontade de desafogo viário, a idéia de se poder atravessar a cidade de ponta a ponta livre de engarrafamentos.

O que permanece incompreensível é até hoje não existir - pelo menos na área urbana - um serviço de ônibus municipal impecável, que se beneficie das facilidades existentes (apenas a título de exemplo: as pistas laterais do Eixo Rodoviário -Residencial — destinadas prioritariamente ao transporte coletivo — tem mão nos dois sentidos; no entanto sua utilização pelos ônibus só se faz numa direção em cada uma delas). Bem como não se ter ainda introduzido o sistema de "transferência" que se impõe para que o passageiro não seja onerado indevidamente.

A estrutura viária da cidade funciona como arcabouço integrador das várias escalas urbanas.

3 - A questão residencial

O plano-piloto optou por concentrar a população próximo ao centro (Eixo Rodoviário-Residencial), através da criação de áreas de vizinhança que só admitem habitação multifamiliar; mas habitação multifamiliar não na forma de apartamentos construídos em terrenos inadequados e constrangendo os moradores das residências vizinhas, como geralmente ocorre.

A proposta de Brasília mudou a imagem de "morar em apartamento", e isto porque morar em apartamento na Superquadra significa dispor de chão livre e gramados generosos contíguos à "casa" numa escala que um lote individual normal não tem possibilidade de oferecer.

E prevaleceu a idéia de distribuir a ocupação residencial em áreas definidas "a priori" para apartamentos (Superquadras) e para casas isoladas — estas, mais afastadas do centro.

4 - Orla do lago

O Plano-piloto refuga a imagem tradicional no Brasil da barreira edificada ao longo da água; a orla do lago se pretendeu de livre acesso a todos, apenas privatizada no caso dos clubes. É onde prevalece a escala bucólica.

5 - A importância do paisagismo

"De uma parte, técnica rodoviária; de outra técnica paisagística de parques e jardins. "(memória descritiva do plano-piloto)

A memória descritiva do plano deixou clara a importância da volumetria paisagística na interação das quatro escalas urbanas da cidade; o canteiro central da Esplanada gramado, as cercaduras verdes das Superquadras, a massa densamente arborizada prevista para os Setores Culturais (ainda até hoje desprovidos de vegetação).

Daí a importância da remoção — enquanto é tempo — das palmeiras imperiais indevidamente plantadas ao longo do Eixo Rodoviário-Residencial para o Eixo Monumental; as razões desta impugnação foram claramente explicadas em dois pareceres anexados a este relato.

São de recomendar, ainda, providências imediatas para a criação de massas compactas de araucária na área abaixo do terrapleno da Praça dos Três Poderes, para que seu verde escuro sirva de fundo e valorize o branco dos palácios, bem como o plantio de renques de pau-rei no entorno direto do edifício do Tribunal de Contas da União — imperdoável aberração no local onde se encontra — a fim de atenuar sua lamentável interferência visual no conjunto da Praça.

6 - A presença do céu

Da proposta do plano-piloto resultou a incorporação à cidade do imenso céu do planalto, como parte integrante e onipresente da própria concepção urbana — os "vazios" são por ele preenchidos; a cidade é deliberadamente aberta aos 360 graus do horizonte que a circunda.

7 - O não alastramento suburbano

A implantação de Brasília, partiu do pressuposto que sua expansão se faria através de cidades satélites, e não da ocupação urbana gradativa das áreas contíguas ao núcleo original. Previa-se a alternância definida de áreas urbanas e áreas rurais — proposição contrária à idéia do alastramento suburbano extenso e rasteiro.

Assim, a partir do surgimento precoce e improvisado das cidades satélites, prevaleceu até agora a intenção de manter entre estes núcleos e a capital uma larga faixa verde, destinada a uso rural.

Tal abordagem teve como conseqüência positiva a manutenção, ao longo de todos esses anos, da feição original de Brasília. Mas, em contrapartida, a longa distância entre as satélites e o "Plano Piloto "isolou demais a matriz dos dois terços de sua população metropolitana que reside nos núcleos periféricos, além de gerar problemas de custo para o transporte coletivo.

Daí a proposta apresentada no início do atual governo da implantação de Quadras Econômicas — ou Comunitárias — ao longo das vias de ligação entre Brasília e as cidades satélites, sendo mantida a destinação das áreas aos fundos desta orla urbanizada à cultura hortigranjeira.

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COMPLEMENTAÇÃO E PRESERVAÇÃO

Complementar e preservar estas características significa, por conseguinte:

1. Proceder ao tombamento do conjunto urbanístico-arquitetônico da Praça dos Três Poderes, incluindo-se os palácios do Itamarati e da Justiça, de vez que constituem sua vinculação arquitetônica com a Esplanada dos Ministérios, cuja perspectiva ficará valorizada com a transferência das palmeiras imperiais.

2. Manter os gabaritos vigentes nos dois eixos e em seu entorno direto (até os Setores de Grandes Áreas, inclusive), permanecendo não edificáveis as áreas livres diretamente contíguas, e baixa a densidades, com gabaritos igualmente baixos, nas áreas onde já é prevista ocupação entre a cidade e a orla do lago. Isto é fundamental.

Brasília, a capital, deverá manter-se "diferente" de todas as demais cidades do país: não terá apartamentos de moradia em edifícios altos; o gabarito residencial não deverá ultrapassar os seis pavimentos iniciais, sempre soltos do chão. Este será o traço diferenciador — gabarito alto no centro comercial, mas deliberadamente contido nas áreas residenciais, a fim de restabelecer, em ambiente moderno, escala humana mais próxima da nossa vida doméstica e familiar tradicional.

3. Garantir a estrutura das unidades de vizinhança do Eixo Rodoviário - Residencial, mantendo a entrada única nas Superquadras, a interrupção das vias que lhes dão acesso — para evitar tráfego de passagem — bem como ocupando devidamente as Entrequadras não comerciais com instalações para esporte e recreio e demais equipamentos de interesse comunitário, sobretudo escolas públicas destinadas ao ensino médio. Proibir a vedação das áreas cobertas de acesso aos prédios (pilotis) e dos parqueamentos — cobertos ou não.

4. Reexaminar os projetos dos setores centrais, sobretudo os ainda pouco edificados, no sentido de propiciar a efetiva existência da escala gregária — além da Rodoviária e dos dois Setores de Diversões — prevendo percursos contínuos e animados para pedestres e circulação de veículos dentro dos vários quarteirões, cuja ocupação deve, em princípio, voltar-se mais para as vias internas do que para as periféricas.

Neste mesmo sentido, não insistir na excessiva setorização de usos no centro urbano — aliás, de um modo geral, nas áreas não residenciais da cidade, excetuando o centro cívico. O que o plano propôs foi apenas a predominância de certos usos, como ocorre naturalmente nas cidades espontâneas.

5. Providenciar as articulações viárias necessárias para fazer prevalecer na cidade de hoje a mesma clareza e fluência viárias contidas no risco original e, paralelamente, "arrematar" a cidade como um todo (recomendo neste sentido consulta ao trabalho "Brasília 57-85")

6. Proceder urgentemente às obras de recuperação da Plataforma Rodoviária, que devem ser coordenadas por arquiteto identificado com o projeto original, a ser mantido com rigorosa fidelidade.

7. Acabar devidamente e manter sempre limpos os logradouros de estar. A começar pelas duas pracinhas da Plataforma Rodoviária — cuidar das plantas, dos bancos e do permanente funcionamento das fontes.

8. Atribuir a profissional identificado com as diretrizes paisagísticas contidas no plano-piloto a tarefa de interpretá-las continuamente junto ao Departamento de Parques e Jardins, para evitar equívocos como plantio de Palmeiras Imperiais no Eixo Rodoviário.

9. Criar grupo de trabalho permanentemente, orientado por pessoa com bagagem cultural e sensibilidade, com a atribuição exclusiva de coordenar todas as intervenções “em tom menor” no espaço urbano; pisos de passeios, localização de bancos, de mastros, sinalização urbana, publicidade e propaganda, cabines telefônicas, enfim, um Departamento de Comunicação Visual Urbana, vinculado aos de Urbanismo, Arquitetura, Parques e Jardins.

10. Legitimar juridicamente as recomendações que implicam em normas de uso e ocupação do solo através de legislação a ser respaldada pelo Governo Federal.

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